terça-feira, abril 4

Mais um pra refletir

Li esse texto agora no site da Universidade e acho que ele abre um leque de reflexão sobre a nossa ocupação em Brasília e muitas vezes pelo mundo afora, justamente pelas nossas atitudes. Agradeço ao professor que é meu chará e que escreveu, rendendo-lhe a homenagem.

Ainda há lugar para o jeitinho brasileiro?

Roberto Sabato Cláudio Moreira

O que há de comum entre a mamãe que estaciona em fila dupla para pegar o filhinho na porta da escola e o indivíduo que se vale de um cargo para mandar voltar um avião que ele perdeu? Em se tratando do Brasil, mais do que se poderia imaginar. As duas situações têm em comum o que ficou consagrado, para o bem ou para o mal, como o jeitinho brasileiro, uma das marcas distintivas de nossa identidade, associada à idéia de malandragem.
A malandragem, assim como a preguiça, a cordialidade e o jeitinho foram ou têm sido alguns dos atributos aplicados para qualificar o modo de ser do brasileiro. Do mesmo modo que a feijoada, o carnaval, a mulata, o samba, a cachaça e o futebol foram elementos da cultura popular apropriados pelas elites para forjar símbolos nacionais.
Na origem, está a estrutura escravista que domina quatro séculos da história brasileira e que torna longo o aparecimento de uma sociedade de classes onde antes só havia, a rigor, o proprietário de terras e o escravo. No Império, o homem livre, nem senhor nem escravo, é o agregado, vivendo do favor, retratado pela literatura do século XIX. Nos primeiros anos do século XX, feitas a Abolição e a República, esse legado da escravidão se traduz no desprezo ao trabalho. Mas nessa nova ordem, de passagem do mundo rural e agrário ao contexto urbano e de nascente industrialização, surge a necessidade de constrição da mão de obra, desafeita ao valor do trabalho. Era preciso quebrar as resistências ao trabalho em meio a uma população que não via sua finalidade moral ou prática.
O ambiente aqui é o Rio de Janeiro, maior cidade e capital do país, passando por transformações urbanas que a tornariam uma cidade civilizada e o veículo da malandragem não é mais a literatura, mas a música popular. No interstício entre o capital e o trabalho, surge o espaço do malandro. O compositor popular urbano – ele mesmo localizado nesse interstício – capta com intuição a pouca vantagem do trabalho e exalta a malandragem como possibilidade de liberdade e prazer.
Além de estar interessado em subordinar o proletariado à disciplina do trabalho, o governo se empenhava na construção de uma imagem ufanista do país. Outros grupos tinham interesse na valorização da nossa ginga e do nosso jeitinho. A capacidade de se safar de situações difíceis é um modo de driblar uma estrutura onde ainda predominam o favor, o apadrinhamento e a relação pessoal sobre as normas universais de conduta. Isso é valorizado, ganhando expressões emblemáticas no futebol e em outras áreas em que a habilidade tornou-se motivo de orgulho patriótico.
Consolidada a ordem social competitiva, não sobraria mais espaço ao elogio da malandragem, mas ela permanece como símbolo de identidade.
Mais tarde, a malandragem serviu de discurso cifrado para driblar a censura e a repressão. Passado o estado autoritário, vem outro momento de sua negação, em que os apelos à ética e à cidadania se fazem mais fortes e o comportamento cotidiano do indivíduo é igualmente criticado. Aqui, a mesma habilidade e jeitinho, antes valorizados, são vistos como burla da lei e da ordem cuja debilidade se lamenta.
Hoje, o brasileiro não parece muito inclinado a valorizar a malandragem, que remeteria à corrupção das elites e às fraudes na esfera pública ou à violência da empresa do narcotráfico. Chico Buarque na Ópera do Malandro já falava do malandro oficial, com gravata e capital, que substitui o malandro que aposentou a navalha.
Enfim, o orgulho ou a vergonha quanto à esperteza no escapar de situações constrangedoras, o jeitinho que supre ou agrava a falta de exercício de uma cidadania plena, no fundo expressam o que se poderia chamar de um dilema brasileiro.
A ambigüidade que parece permanecer como substrato da nossa mentalidade. Em um momento, invejamos o modelo das sociedades centrais e negamos os elementos de nossa formação histórica. Em outro, valorizamos talvez exageradamente algumas de nossas características, como algo absolutamente original que nos orgulha.
Isso tem nos enredado em contradições como, por exemplo, ao nos negarmos, cultivamos como que um complexo de inferioridade e quando, ao contrário, nos orgulhamos da nossa malandragem, alimentamos a impossibilidade de construir uma ordem social mais justa, equilibrada, orientada por valores universais.
O jeitinho pode ser simpático, gerando nossa fama de amáveis, gentis e criativos. Pode até ser estratégia de sobrevivência de uma população desassistida em suas necessidades básicas. Mas sempre será uma quebra da ordem, da norma, uma apropriação do público em benefício do privado.
O texto foi copiado na íntegra e cito seus créditos.

Roberto Sabato Cláudio Moreira é sociólogo e professor aposentado do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília. Foi jornalista e professor de Comunicação na mesma universidade. É doutor em Sociologia, com a tese Identidade e Pensamento Social no Brasil. Trabalhou no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Tem diversos livros e artigos publicados.

Eu também trabalhei no Iphan!!! Agora defendo Brasília de coração, vem comigo também, vem!

Um comentário:

Anônimo disse...

Roberto, li o texto do professor Roberto Sabato Moreira, gostei da análise dele, mas eu vejo que infelizmente ainda há lugar para o tal do jeitinho brasileiro. Esse jeitinho é algo muito arraigado à nossa cultura, como ele mesmo mostrou no artigo. É alguma coisa ligada à falta de educação, àquela necessidade que muitos têm de dar aquela bela rasteira no outro, contanto que o sujeito se dê bem em qualquer circunstância na vida. Esse jeitinho é mesmo uma praga brasileira, pois ele quebra qualquer regra estabelecida - é a lei do mais esperto, a lei do faroeste (onde não havia lei e sim a pistola para resolver), é a lei do Gerson, aquela famosa lei que ficou marcada numa publicidade muito tempo atrás e que, infelizmente, resumia todo o comportamento geral do brasileiro para se dar bem na vida, em qualquer situação, sem fazer força.
E esse jeitinho a gente vê em todos os níveis, em qualquer ponto da sociedade, no comportamento de homens inteligentes, instruídos e cultos, bem como na maneira de agir de muitos desprovidos de qualquer coisa. Há algo estranho na relação das pessoas no Brasil, seja no tráfego, seja no trabalho, seja para mandar parar um avião, seja até mesmo no seio da família. Nossa cultura parece ter instituído algo como "eu sou o mais importante, eu tenho que ser sempre o primeiro (por isso, que se dane o direito dos outros(, eu tenho poderes, etc...Há uma cultura da aparência no Brasil, "somos os melhores, os maiores, temos a maior qualquer coisa do mundo, tenho que consquistar as coisas a qualquer custo, mesmo sendo incompetentes para tal", e por aí vai...Eu confesso que não sei quando esse jeitinho vai acabar ou pelo menos diminuir...A coisa tem que começar na base, na família, na educação...Penso que enquanto não houver uma reflexão sobre responsabilidade, sobre o que estamos fazendo aqui neste mundo e em especial neste País, enquanto não olharmos nosso semelhante com o verdadeiro respeito, colocando-nos nos limites de nossas possibilidades, lutando pela vida com dignidade e não com jeitinhos, muito água irá rolar por baixo da ponte e tudo continuará como dantes no quartel de abrantes. Obviamente, para isso acontecer para melhorar e este utópico (por enquanto) comportamento ser alcançado, será necessário também que nossos dirigentes, digníssimos homens públicos dêem o exemplo da verdadeira honradez e responsabilidade, de tal modo que a coisa possa fluir de cima para baixo e contagiar positivamente toda esta Nação. Por enquanto, infelizmente, os exemplos que vemos são uma vergonha nacional, nada acontece e tudo termina naquelas tão afamadas pizzas tão ironizadas pela própria mídia.